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"Narcopentecostalismo": traficantes evangélicos usam religião na briga por territórios

Por PH em 12/05/2023 às 16:30:03
Território foi batizado de

Território foi batizado de "Complexo de Israel" pelo chefe do grupo criminoso, segundo a polícia �- Foto: Reprodução

Os traficantes que dominam as favelas de Parada de Lucas, Vigário Geral e outras três comunidades na Zona Norte do Rio de Janeiro elegeram referências bíblicas como seus principais símbolos.

A facção se autodenomina "Tropa de Arão" — uma figura cristã, irmão de Moisés. A estrela de David foi espalhada em muros e bandeiras nas entradas das favelas, e está até em um neon no alto de uma caixa d"água na comunidade Cidade Alta.

O território foi batizado, segundo a polícia, de "Complexo de Israel" pelo chefe da Tropa — uma referência à "terra prometida" para o "povo de Deus" na Bíblia.

O grupo criminoso comandava inicialmente o tráfico em Parada de Lucas e estendeu seu domínio para as comunidades vizinhas. Hoje, a Tropa controla o tráfico nas favelas de Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral, de acordo com a polícia e centros de pesquisa em segurança pública.

O Complexo de Israel é emblemático de um fenômeno que alguns pesquisadores têm chamado de "narcopentecostalismo" — não apenas o surgimento de traficantes que se declaram evangélicos, mas a forma como isso influencia a atuação das facções na disputa por territórios no Rio de Janeiro.

Ou seja, além da conversão pessoal, a religião também tem um papel estratégico para manutenção do poder e na disputa por territórios, segundo os pesquisadores.

A comunidade evangélica tradicional rejeita fortemente a ideia de que um traficante possa ser evangélico.

"Um pastor sério não vai aceitar que uma coisa que é ilegal na lei humana e imoral seja associada a Cristo", diz o pastor Carlos Alberto, que atua há 17 anos como pastor na favela da Cidade de Deus e antes era, ele próprio, traficante. "O pastor tem que mostrar para a pessoa que ela pode se arrepender, mas para ser aceito como evangélico ela tem que largar tudo que é contrário aos princípios bíblicos, morais e éticos."

No entanto, os traficantes considerados parte do neopentecostalismo não só se declaram membros na religião, mas de fato têm uma vida religiosa, apontam pesquisadores.

"São traficantes que ao mesmo tempo participam da "vida do crime" e da vida religiosa evangélica, indo a cultos, pagando o dízimo e até mesmo pagando por apresentações de artistas gospel na comunidade", afirma Kristina Hinz.

Essa influência de religiões sobre as dinâmicas de poder do tráfico sempre existiu, dizem pesquisadores, e não é algo particular ao protestantismo. Mas a conversão de traficantes ao pentecostalismo é um fenômeno que tem características próprias, em um país que caminha para ter maioria evangélica na próxima década.

Mais evangélicos

Dados de 2020 de pesquisa feita pelo instituto Datafolha apontam que 31% da população era evangélica nesta data, com católicos compondo 50%.

Se o crescimento continuar no ritmo atual, em 2030 os evangélicos chegarão a 40% da população, segundo uma projeção do pesquisador José Eustáquio Diniz Alves, doutor em Demografia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Para a população das favelas, as igrejas pentecostais passaram a ter uma importância significativa. As redes evangélicas oferecem segurança e apoio material, espiritual e psicológico para os moradores, aponta a pesquisadora Christina Vital Cunha em Oração de Traficante: uma etnografia.

Foi neste contexto que se deu a aproximação dos traficantes desta religião, diz o sociólogo Doriam Borges, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Manutenção do poder

Nesta união do tráfico com a religião, doutrinas neopentecostais se misturam às estruturas de poder das facções.

Em muitos locais, como no Complexo de Israel, por exemplo, ela é "decisiva para a governança e a manutenção do poder de grupos criminosos", diz Kristina Hinz.

Comunidade da Cidade Alta, na Zona Norte do Rio, é uma das dominadas pelo TCP — Foto: ReproduçãoComunidade da Cidade Alta, na Zona Norte do Rio, é uma das dominadas pelo TCP — Foto: Reprodução

"A apropriação pelo tráfico da gramática de guerra reconhecida nas favelas e empregada por algumas igrejas neopentecostais proporciona uma narrativa de legitimidade religiosa para a expansão violenta do território", afirma a pesquisadora.

O chefe do tráfico no Complexo de Israel é também um dos líderes do Terceiro Comando Puro (TCP), segundo a polícia.

O TCP é hoje o terceiro maior grupo armado do Rio, atrás das milícias e do Comando Vermelho (CV), de acordo com o estudo Mapa dos Grupos Armados do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O complexo faz parte do território do TCP, que é um rival histórico do CV. Na disputa por territórios, o TCP fez alianças com milícias, apontam as pesquisas de Hinz e Borges.

Os especialistas afirmam ainda que as estrelas de David no Complexo de Israel ou a pichação "Jesus é o dono do lugar" em um terreiro de umbanda destruído por traficantes são mais do que símbolos religiosos.

"Quando esses traficantes evangélicos ordenam o fechamento de terreiros, além do racismo e intolerância religiosa, estão demonstrando seu poder, força e domínio no território. Ou seja, esse grupo de traficantes utiliza a gramática evangélica como instrumento de dominação da população residente nas favelas."

No entanto, Vital Cunha pontua que nem sempre o fato de um traficante ser evangélico resulta na retirada de santos católicos ou na perseguição de religiões de matriz africana.

Ela descreve em sua pesquisa casos em que os próprios moradores fazem esse tipo de constrangimento e intolerância.

Rejeição dos evangélicosSe a linguagem religiosa é familiar para a população, a rejeição da ideia de que traficantes possam ser de fato cristãos é muito forte na comunidade evangélica mais tradicional, como explica a pastora e pesquisadora Viviane Costa, autora de Traficantes Evangélicos.

Alguém que vive do crime, nessa visão, não cumpriria os "requisitos de uma verdadeira conversão", diz ela.

Para muitos cristãos, "ser evangélico" não significa só aderir às crenças da religião, mas ter atos e um estilo de vida de acordo com certos preceitos, explica o sociólogo Diogo Silva Corrêa, autor do livro Anjos de Fuzil, resultado de sua pesquisa sobre as relações entre o crime e a religião na Cidade de Deus, favela na Zona Oeste do Rio.

Ou seja, para alguém ser evangélico, não basta acreditar, é preciso viver de uma certa forma — a ideia de um criminoso evangélico seria, portanto, inaceitável.

"Se a pessoa não procurar mudar, não tem como se intitular cristão — e isso vale para todos, para o adúltero, para o brigão, para quem tem vício, não só para o traficante", diz à BBC o pastor Carlos Alberto, de uma igreja neopentecostal na Cidade de Deus.

Os pastores coniventes com o tráfico são uma minoria, defende ele, mas é algo problemático porque é uma minoria que "tem forte influência sobre o rebanho".

"O pastor sabe que é errado, mas alguns aceitam por causa dos benefícios. O traficante paga por uma cruzada (evento religioso aberto), faz uma reforma na igreja…", diz ele. "É uma visão errada de que Deus vai transformar uma maldição em benção, um dinheiro maldito em algo positivo."

"Mas é algo que faz a igreja perder credibilidade", diz ele. "Se você percebe que o traficante quer proteção, quer usar a religião como um amuleto, mas não quer largar o crime, não pode se associar."

"Como você vai ficar conivente quando a lei do tráfico é muito rígida, é olho por olho, não existe compaixão?", diz.

"Pastores que aceitam aparecer com certos políticos, que são coniventes com certas práticas, não me representam."

No entanto, Viviane Costa explica que, conforme mais e mais brasileiros se tornam protestantes, a conversão nos moldes "mais tradicionais" é menos comum — e pessoas se consideram evangélicas mesmo que não se comportem de acordo.

Ela lembra do fenômeno das celebridades evangélicas citado por Carlos Alberto. "Mesmo alguns políticos e celebridades que se declaram cristãos reformados não seriam considerados verdadeiramente evangélicos levando em conta a expectativa mais tradicional", diz.

"Fui bastante criticada por falar em "traficantes evangélicos", mas não fui eu que os nomeei como evangélicos — é assim que o fenômeno é conhecido e como eles próprios se identificam", diz Costa. "O livro é o resultado de uma pesquisa, e como pesquisadora eu estou descrevendo um fenômeno, não fazendo uma análise teológica se a pessoa realmente é convertida."

Desde antes da criação do Complexo de Israel, moradores relatam à imprensa desaparecimentos de familiares e amigos em favelas dominadas pela facção.

Muitas não procuram a polícia nem relatam oficialmente os desaparecimentos por medo, segundo observadores de centros de pesquisa sobre violência.

Em alguns lugares, no entanto, alguns traficantes evangélicos têm um grande respeito por pastores de igrejas nas favelas que dizem não aos grupos armados, diz Costa.

"São considerados verdadeiros homens santos, porque realmente aderiram ao caminho correto", afirma.

Fonte: Alagoas 24 horas

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