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Com preço dos combustíveis congelados há décadas, Bolívia festeja menor inflação do mundo

Por PH em 16/10/2022 às 10:35:49
Luis Arce, presidente da Bolívia, ainda durante sua campanha pelo comando de La Paz Ronaldo Schemidt/AFP

Luis Arce, presidente da Bolívia, ainda durante sua campanha pelo comando de La Paz Ronaldo Schemidt/AFP

Economia do país andino tem peculiaridades que desafiam dogmas econômicos — não se sabe até quando.

"O quê? A gasolina na Bolívia não sobe de preço nem com a guerra entre a Ucrânia e a Rússia? Que loucura! Porque no Equador ela disparou 30%; na Argentina, 18%; no Chile, 40%; no Brasil, 49%; no Paraguai, 59%; no Peru, 64%. Isso sem falar do Uruguai: 84% de aumento!"

Era esse o conteúdo de um anúncio do Ministério da Economia da Bolívia lançado em meados de julho. Sua publicação coincidiu com uma série de notícias na imprensa internacional sobre a baixa inflação registrada no país andino durante o primeiro semestre deste ano. A Bolívia ficou famosa por anunciar uma inflação de 1,2% nos seis meses iniciais de 2022, a menor da região. Em setembro, o mesmo índice acumulado chegou a 1,76%.

"Bolívia, o país com a menor inflação do mundo", dizia outro anúncio lançado em meados do ano.

Como se sabe, a relação entre o congelamento do preço dos combustíveis no país andino e a baixa inflação é direta. O principal catalisador inflacionário do mundo é o incremento do preço da energia, que aumentou fortemente após a eclosão da guerra na Ucrânia.

Na Bolívia, os preços dos combustíveis não sobem desde o final do século passado, quando foram congelados durante o governo de Hugo Banzer (1997-2000), uma das primeiras e mais importantes incoerências no modelo neoliberal vigente na época. Banzer começou a subsidiar a gasolina e o diesel, os combustíveis mais consumidos do país, porque estava preocupado com o mal-estar social que já dava as caras durante seu governo e explodiria em 2000 com a chamada "guerra da água".

A mobilização, que parou a cidade de Cochabamba por mais de uma semana, bloqueou uma medida neoliberal tão impopular quanto a livre flutuação do preço dos combustíveis: a indexação das tarifas da água potável. A "guerra da água" foi o antecedente direto das manifestações contra o status quo e a queda em 2003 de Gonzalo Sánchez de Lozada, o "patriarca" do neoliberalismo boliviano, que hoje tem 92 anos e vive exilado em Washington.

Assim se criaram as condições para o triunfo democrático de Evo Morales em 2006. Com ele, os camponeses e trabalhadores chegaram ao poder organizados na frente única da esquerda boliviana, o Movimento ao Socialismo (MAS).

Paradoxalmente, em 2010, Morales quis suspender o subsídio à gasolina e ao diesel, alegando que a medida estava endividando o Estado. Por mais que a Bolívia seja um país produtor de hidrocarbonetos, seu ponto forte são os mais leves, principalmente o gás natural e o gás liquefeito de petróleo. O país tem muito pouco petróleo leve e nada de petróleo pesado, que é a matéria-prima do diesel. O abastecimento nacional, portanto, requer a importação dessas substâncias a um preço que aumentou com o tempo.

Morales estava no auge de seu poder e de sua popularidade, mas não pôde impor o chamado "gasolinaço" devido à reação das bases de seu próprio movimento. Precisou recuar e, para isso, usou a máxima que só serviu naquele momento e nunca mais: de "governar obedecendo". Quem ele deveria obedecer era o povo. Povo que, no geral, dava ordens bem mais ambíguas com interpretações diversas, mas não neste caso.

No que diz respeito ao preço da energia, a voz do povo foi claríssima: zero aumento. Hoje mesmo, só os ultraliberais bolivianos creem que podem acabar com o subsídio aos combustíveis — que neste ano devem custar aos cofres públicos cerca de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,8 bilhões) — sem graves consequências sociais. Até a centro-direita respalda em público este gasto, ainda que cultive em segredo a esperança de que sua magnitude termine enterrando o modelo econômico que vem enfrentando sem êxito eleitoral nas duas últimas décadas.

Controle de preços

Um dos aspectos fundamentais deste modelo é o controle ferrenho da inflação. A macroeconomia de Luis Arce, primeiro como ministro da Economia de Morales e atualmente como presidente, tem tal objetivo em seu cerne. Nisso, está plenamente de acordo com os economistas ortodoxos. A obsessão anti-inflacionária vem da história da esquerda boliviana, que precisou pagar com 20 anos de isolamento e marginalização sua participação no governo hiperinflacionário dos anos 1980, encabeçado por Hernán Siles Zuazo.

Se o objetivo de uma baixa inflação é compartilhado pelos dois tipos de pensamento econômico preponderantes no país — o estatista e o neoliberal — as diferenças sobre como alcançá-la são enormes.

A "Arcenomics" conseguiu derrubar o mito neoliberal de que os controles de preços nunca funcionam. Com cotas para exportar alguns produtos e subsídios, o país conseguiu navegar pela inflação mundial de 2007, assim como pela alta atual dos cereais e da carne. A seu favor está a capacidade de produção alimentar da Bolívia, que é cerca de 70% autossuficiente. E, claro, a pequena dimensão da economia, que pode se estabilizar a um custo relativamente baixo: por exemplo, o gasto com o subsídio aos combustíveis é imponente, mas não vai levar por si só o Tesouro à ruína.

Tipo de câmbio fixo

Outro elemento-chave do modelo (e da baixa inflação) é a eliminação da desvalorização do boliviano, a moeda local, com a implementação de um tipo de câmbio fixo desde 2011. Sem desvalorização, os comerciantes não precisam aumentar os preços para se protegerem do risco cambiário. O boliviano se mantém forte, o que é bom para a pujança da demanda interna e para as expectativas da população. Neste período, pela primeira vez em muito tempo, talvez desde sempre, as famílias não temem fazer poupanças na moeda nacional.

As expectativas são tão solidamente otimistas que derrubaram outro baluarte neoclássico: déficits fiscais e comerciais como os que o país vem tendo desde 2015 deveriam ter debilitado a moeda nacional e empurrado o povo para o dólar. Em outras palavras, deveria ter culminado em uma crise financeira, o que não ocorreu até agora. O país, na realidade, foi ficando mais caro em dólares.

No que diz respeito a isso, o governo se beneficia da alta neste ano dos preços das matérias-primas vendidas pela Bolívia, fenômeno que até dezembro deve se traduzir em um superávit comercial de, talvez, US$ 1,3 bilhão (R$ 6,8 bilhões).

O risco existe, no entanto. O câmbio fixo exige que o governo tenha dólares suficientes para entregá-los a importadores, viajantes e para pagar sua dívida. Caso contrário, o público deixaria de considerar o boliviano como "forte" e, assim, uma crise financeira seria produzida.

Foram as reservas cambiais que precisaram suportar o peso do modelo anti-inflacionário de Arce. Na era do superciclo das commodities (2004-2014), as reservas chegaram a representar 50% do PIB, alimentadas por uma indústria de gás poderosa. De 2015 a este ano, contudo, os lucros advindos do gás vinham caindo, e a produção também perdeu força.

As reservas, em consequência, caíram de US$ 15 bilhões (R$ 77,9 bilhões) para os atuais US$ 4,1 bilhões (R$ 21,3 bilhões) — US$ 1 bilhão (R$ 5,2 bilhões) líquido e o resto em ouro. A quantia daria conta de cobrir seis meses de importações se o ouro for monetizado.

O superávit comercial e o superávit da conta de capitais esperados para este ano deveriam se traduzir em um aumento das reservas, mas isso não ocorre porque as fontes desses superávits são principalmente privadas, e não estatais, como ocorria no período anterior. Os donos das divisas não as depositam em bancos por motivos variados: algumas figuras de setores agroindustriais as deixam no exterior, supostamente por razões logísticas. Os mineradores de cooperativas que produzem e revendem ouro (neste segundo caso, após comprá-lo do contrabando no Peru), preferem se manter na informalidade. Quem recebe dólares de parentes no exterior não faz câmbio nos bancos, onde pagaria um valor mais alto.

Simultaneamente, boa parte dos dólares que entram no país sai rapidamente porque são usados por contrabandistas que trazem produtos de países vizinhos, em particular da Argentina, cuja elevada desvalorização incentiva o comércio informal na Bolívia. (Decerto, o contrabando de produtos baratos argentinos explica em parte a baixa inflação boliviana.)

A chave: as reservas

Para fortalecer as reservas, o governo lança mão de um plano de endividamento em dólares que tira proveito do fato de a dívida externa boliviana ser de apenas 31% do Produto Interno Bruto (PIB), o que dá a La Paz uma margem importante para buscar novos créditos no exterior. Também já está em curso outro plano de "substituição de importações", cujos resultados são discutíveis.

O que a oposição exige do governo é a redução do déficit fiscal. Arce tem agido nesse sentido, o que leva quadros de seu próprio partido a criticá-lo pela "falta de obras". Em geral, no entanto, o modelo segue baseando-se em um amplo gasto e investimentos públicos, o que torna necessário aumentar a cada ano as arrecadações tributárias e o crédito que o Banco Central concede ao Estado. Esse é um terceiro conceito neoclássico posto em xeque: apesar do aumento do crédito interno e da oferta monetária, a inflação não subiu.

Os economistas quebram a cabeça buscando um porquê. A resposta mais verossímil está, mais uma vez, nas expectativas da população — o povo crê que a estabilidade dos últimos 30 anos se manterá no futuro. Também passa pela existência de poucos monopólios na Bolívia (os poucos que existem, como o da cerveja, são desafiados pelo contrabando). Com poucas expectativa de alta dos preços e uma competição estimulada pelo Estado ou pelo contrabando, o resultado é que Milton Friedman fracassa na Bolívia: cresce a quantidade de dinheiro, mas não os preços.

Como muitas vezes ocorre na América Latina, o assunto se reduz às divisas. Tudo depende de o governo ter a capacidade de acumular dólares suficientes para manter de pé a arquitetura que descrevemos. Os economistas do governo e da oposição seguem o indicador de reservas internacionais como se fosse seus próprios investimentos na bolsa.

Se o governo de Arce conseguir evitar, de todas as formas, a desvalorização até o fim de sua gestão, em 2025, ninguém poderá tirar sua medalha de ter conseguido fazer com que os bolivianos atravessassem com maior comodidade que seus pares sul-americanos a dura etapa econômica criada pela guerra.

Fonte: G1

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